sexta-feira, 28 de novembro de 2025

SABIUS, OS MOLEQUES

 

Gerald Thomas em suas montagens sempre procura mostrar seu nível intelectual, seus conhecimentos do mundo e de muitas personalidades (curiosamente, neste espetáculo, ele não cita sua relação com Samuel Beckett, nem exibe a famosa foto dos dois conversando em um café de Paris!), mas ele não o vem fazendo com empáfia e arrogância, pelo contrário, o espetáculo é bastante acessível e muito bem humorado e conta com a incrível participação de Fabiana Gugli e a surpresa que é o ótimo Jefferson Schroeder.

Impossível fazer uma sinopse do caos que é um trabalho de Thomas: o início com ele fazendo a percussão e Fabiana descabelada urrando que decapitaram sua ave é um sinal do que vem a seguir: cinco pessoas mascaradas perambulam por um espaço inóspito e depositam uma bola/um ovo? em uma cesta e realizam diálogos ou monólogos de como anda mal a humanidade, sempre recorrendo ao tempo presente ou passado.

Esse jogo se o presente é melhor ou pior do que o passado me fez lembrar uma situação criada por Millôr Fernandes onde um grupo vivendo em um tempo caótico comenta que num tempo futuro ao recordar esse caos poderá comentar: “BONS TEMPOS AQUELES!”

Como uma ópera, a movimentação do elenco segue passo a passo a fantástica trilha sonora assinada por Thomas e Marcelo Alonso Neves, que vai desde uma Ave Maria em ritmo de samba, passa por Tom Zé e culmina com o suntuoso final da Sinfonia nº 2 de Mahler.

O cenário de fim do mundo de Fernando Passetti iluminado dignamente com a mestria habitual de Wagner Pinto e os figurinos cinzentos de João Pimenta formam o clima perfeito para aquilo que Thomas quer mostrar. Diga-se que a peça tem um visual belíssimo.

As cenas se sucedem de forma irregular sem uma sequência narrativa, com altos e baixos, sendo que os melhores momentos são os monólogos de Fabiana Gugli (sempre uma presença poderosa que cabe como uma luva aos propósitos de Thomas, com direito até uma ascensão em cena) e do surpreendente e muito engraçado Jefferson Schroeder. Completam o elenco Apollo Faria, Nilson Muniz e Pedro Inoue.


O encenador faz justas homenagens a Zé Celso e a Tom Zé que estava presente na estreia em outro momento digno de nota.

A encenação termina de maneira apoteótica ao som da Sinfonia “Ressurreição” de Mahler com os intérpretes numa ascensão rumo talvez a um mundo melhor. Final feliz? Pena que a cortina se fecha antes do término da emocionante melodia.

Quanto ao título “Sabius, os Moleques” que atire a primeira pedra, quem o decifrar!

“Decifra-me ou ignoro-te” parece ser o pensamento de Gerald Thomas.

Espetáculo a ser conferido em cartaz no SESC 14 Bis até 21 de dezembro de quinta a sábado, 20h e domingo, 18h.

28/11/2025

terça-feira, 25 de novembro de 2025

LOKONA



1.   INTRODUÇÃO

A loucura já rendeu muitas obras de arte.

Na música, como não lembrar da “Balada do Louco” (1972) de Arnaldo Baptista e Rita Lee e da inimitável “Balada Para Un Loco” (1969), poema do argentino Horacio Ferrer eternizado pela música de Astor Piazzolla?

No teatro, basta citar “Marat Sade” de Peter Weiss e no cinema o memorável e poético “Esse Mundo É dos Loucos” (Le Roi de Coeur) de Philipe de Broca.

Sem esquecer de toda a obra de Nise da Siveira.

De alguma maneira todas essas obras têm em sua origem o livro “O Elogio da Loucura” escrito em 1508 pelo holandês Erasmo de Rotterdam onde a deusa Loucura chega a exclamar: “Quanto mais contrária ao bom senso é uma coisa, tanto maior é o número dos seus admiradores, e constantemente se vê que tudo o que mais se opõe à razão é justamente o que se adota com maior avidez. Perguntar-me-eis por que? Pois já não vos disse mil vezes? É porque quase todos os homens são malucos.”[9]

Encerro esta introdução citando uma frase de Samuel Beckett contida no insuperável “Esperando Godot”:

Todo mundo nasce louco, só que alguns permanecem”

 

2.   LOKONA

Todas essas referências me vieram à mente ao assistir a irreverente encenação de Dino Bernardi inspirada na obra de Rotterdam brilhantemente adaptada para o teatro por ele e por Eduardo Akiyama.

Dino optou por uma versão tropicalista (carnavalizada, segundo suas próprias palavras) colocando a loucura que tem o nome de LouLou Divine em um programa televisivo apresentado por um mestre de cerimônias tão louco quanto ela!

Após uma breve introdução do apresentador, LouLou entra em cena com uma roupa amarela extravagante, envolta em um enorme boneco inflável declamando “Quando Ismália Enlouqueceu”, o poema de Alphonsus de Guimaraens.

O clima do espetáculo, impregnado de um delicioso deboche, está criado e o público já se envolveu; a partir daí é só acompanhar as peripécias de Lou Lou acompanhada por um, às vezes incrédulo, apresentador. Tudo isso acompanhado pelas músicas, também irreverentes, tocadas ao vivo por Fábio Evangelista. Sucedem-se cenas hilárias como aquela das perguntas ping pong e aquela do caleidoscópio. Ao final fica a pergunta: Quem são os loucos nesta modernidade ensandecida?

A extravagância da encenação só podia contar com interpretações também extravagantes e Karina Giannecchini e Fernando Aveiro o fazem de maneira brilhante. A garra e a energia de Karina são de tirar o fôlego.

Rir sempre nos faz pensar em quanto estamos rindo de nossa própria desgraça.

Felizmente somos desgraçadamente loucos.

Não se assuste com o título da peça, ele tem tudo a ver com aquilo que se vê no palco.

Divirta-se e pense a respeito.

 

LOKONA está em cartaz no aconchegante Teatro Manás Laboratório de segunda a quarta às 21h até 17 de dezembro.

 

25/11/2025

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

OS VENCEDORES

 

Foto de Victor Otsuka

Servilismo, arrivismo, ganância por dinheiro e bens materiais podem ser assuntos de uma comédia? Leonardo Cortez e Pedro Granato dão provas que sim.

Essa “Trilogia da Fuga” formada por “Pousada Refúgio” (2018), Veraneio (2023) e “Os Vencedores” (2025) tem o poder nos fazer rir de nossas desgraças; na ocasião em que assisti a “Pousada Refúgio”, escrevi: “Ri-se muito durante o espetáculo, risos até nervosos, por mexerem com valores do nosso cotidiano. Ao final, porém, resta aquele gosto amargo na boca da maioria dos brasileiros que tem seus sonhos destruídos por uma realidade cruel

E essa sensação está mais presente ainda em “Os Vencedores” que desde o título revela uma trágica ironia, pois todas as personagens, incluindo o chefe milionário, são, de uma maneira ou de outra, perdedores.

Sinopse da peça contida no programa “Na noite de comemoração de casamento o casal Chico e Maria Rita se vê obrigado a socorrer o patrão do marido Luiz Otávio acometido de um mal súbito

O maior perdedor é Chico, um homem medíocre que vive em função de bajular o chefe, concordando com tudo como uma perfeita “vaquinha de presépio”. No momento em que tenta recuperar a sua dignidade é muito tarde e ele acaba tendo um fim trágico, semelhante àquele de São Sebastião; sua mulher Maria Rita tem uma trajetória inversa, inicia dignamente contestando a presença do chefe do marido em sua casa, mas cede ao puxa saquismo/servilismo no momento em que vê oportunidades de benefícios vindas de Luiz Otávio. O filho frustrado do casal (Bernardo) também tenta se beneficiar das benesses do homem rico. Há também a presença de Rivânia, simpaticíssima na aparência, que se revela uma arrivista de primeira grandeza. Finalmente Luiz Otávio, que tem poder e dinheiro, mas uma vida pessoal frustrada e amargurada. Enfim... TODOS PERDEDORES!

E é nesse clima trágico que Cortez e Granato nos fazem rir, mas também refletir de que maneira rasteja a humanidade. Para tanto contam com o ótimo elenco formado por Gabriel Santana (Bernardo), Glaucia Libertini (impagável como Rivânia), Lena Roque (a tensa Maria Rita), Leonardo Cortez (Chico) e Luciano Chirolli que deita e rola na composição do perverso, porém patético, Luiz Otávio.

Leonardo Cortez vem nos brindando com esse tipo de texto desde o memorável “Maldito Benefício” de 2014 e promete três novos trabalhos para 2026 que serão muito bem-vindos e dramaturgia brasileira agradece! 

OS VENCEDORES está em cartaz no SESC Ipiranga até 14/12: sextas e sábados, 20h e domingos, 18h. 

24/11/2025

domingo, 23 de novembro de 2025

ALICES

 

Jarbas Capusso Filho inicia sua peça em um clima beckettiano e entrega aos poucos a razão daquelas duas Alices estarem naquele local indefinido vestidas iguais, com o mesmo penteado e tendo muitas outras coisas em comum.

A denúncia da violência dos homens com as mulheres é o mote principal da peça, mas Capusso trata o assunto de maneira bastante original e surpreendente.

Joana Dória responde com muita criatividade à tradução cênica do texto, sendo responsável também pelos figurinos e pelo cenário, o qual deve remeter ao que ela imagina como deve ser aquele “local indefinido”. O desenho de luz de Henrique Andrade e a instigante trilha sonora de Pedro Semerighi se somam às intenções da diretora.

Nicole Cordery, em mais um momento marcante de sua rica trajetória responde mais uma vez por uma personagem chamada Alice, neste caso é uma mulher   realista e cansada de sonhar; por outro lado a outra Alice, em significativa interpretação de Fábia Mirassos (que nos surpreende a cada novo trabalho), é doce e ainda acredita que seu Godot está para chegar.

Uma embalagem com plástico bolha está presente em toda a ação e vai ser a estrela da comovente cena final onde tomamos conhecimento das milhares de Alices que sofrem agressões em suas vidas.

Alices deve ser assistida com muita atenção e servir de alerta contra atitudes que a sociedade machista insiste em perpetuar. 

Trata-se de uma peça feminista sem os cacoetes e clichês muito comuns em espetáculos do gênero.

ALICES está em cartaz no SESC Pinheiros até 13 de dezembro com sessões de quinta a sábado às 20h30. 

23/11/2025

 

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

O MERCADOR DE VENEZA

 

Foto de Ronaldo Gutierrez 

Se nos piscarem, não sangramos?

Se nos fizerem cócegas, não rimos?

Se nos envenenarem, não morremos?

Se nos ultrajarem, não nos vingamos?

O discurso/desabafo do judeu Shylock pouco antes do final da peça, talvez seja o cerne de “O Mercador de Veneza”, essa potente obra de Shakespeare (1564-1616), ora revisitada e discretamente atualizada pelos olhos atentos de Bruno Cavalcanti, tradutor e adaptador do original.

Ali fica claro que a obra não é antissemita como muitos chegaram a declarar, pelo contrário, é um libelo contra o preconceito, no caso contra os judeus, mas poderia ser contra os negros, os homossexuais ou qualquer outro grupo que não se encaixe nos padrões da “dita” civilização branca.  Está aí a grandeza da obra de Shakespeare, que continua a dizer coisas e cutucando depois de mais de quatro séculos. Talvez por ter um final feliz, até um pouco forçado e artificial, a obra, escrita entre 1596 e 1597, é classificada como comédia, mas encerra temas bastante dramáticos que afetam a humanidade como vingança, guerra, oportunismo, ganância e o já citado preconceito.

A encenação de Daniela Stirbulov é límpida e muito fiel ao texto, utilizando o espaço do Tucarena como poucos espetáculos ali realizados conseguiram fazê-lo, valendo-se do prático cenário criado por Carmem Guerra, do excelente desenho de luz de Wagner Pinto e Gabriel Greghi e da dinâmica direção de movimento de Marisol Marcondes que não deixa o elenco ficar de costas por muito tempo para nenhum lado da plateia.

O elenco coeso e talentoso completa esse excelente espetáculo: Gabriela Westphal brilha tanto como Pórcia como a mesma travestida do juiz que muda o rumo do julgamento; Cesar Baccan interpreta o mercador Antônio, antissemita predador; Marcelo Ullmann é Bassânio, oportunista e ganancioso é amigo e algo mais de Antônio; Amaurih Oliveira tem garra e graça tanto como o Príncipe de Marrocos como Lorenzo; Rebeca Oliveira tem a brejeirice de Nerissa; Marisol Marcondes interpreta Jéssica, a filha de Shylock; Marcelo Diaz marca presença cômica como o empregado Lancelotte, assim como Thiago Sak como Príncipe de Aragão; Renato Caldas dá dignidade à personagem de Solânio, amigo de Antônio; palmas para Augusto Pompeo e Junior Cabral que emprestam suas potentes vozes para , respectivamente, o Duque e Graciano

E um parágrafo especial sobre Dan Stulbach: por meio de poucas falas com sotaque levemente carregado, muitos silêncios e gestual contido onde mãos e dedos têm grande destaque ele constrói a personagem de Shylock de maneira primorosa com muita verdade e humanidade. Mais um dos grandes trabalhos de ator desta rica temporada de 2025.

A ficha técnica revela o cuidado da produção na escolha dos profissionais que integram a montagem, cabendo destacar o nome do especialista shakespeariano Ricardo Cardoso, como consultor sobre a vida e a obra do bardo.

O programa impresso da peça, além de muito bonito, contém importantes textos sobre a obra.

Com grande afluência de público, o espetáculo deve estender a temporada até 2026, reestreando no mesmo espaço no final de janeiro.

Grande momento de nosso teatro!

NÃO PERCA 

17/11/2025

 

domingo, 16 de novembro de 2025

JUEGO DE NIÑOS

 

 

Elas queriam livrar-se do pesadelo

            da guerra que na acabava mais

                   e algum dia chegar

                   a uma terra de paz.

(Cruzada das Crianças - Bertolt Brecht) 

Essa foto de dez anos atrás de uma criança morta em uma praia da Turquia chocou o mundo e fez muita gente pensar que esse fato poderia mudar as cruéis políticas de imigração administradas por aqueles que se acham donos das fronteiras. Depois de uma década pode-se constatar que nada mudou ou até piorou.

As três crianças mostradas em “Juego de Niños” de Newton Moreno foram jogadas pelo muro por seus pais para o lado norte americano, pensando em um futuro melhor para elas, mas seus destinos foram as prisões que infestam a região próxima à fronteira.

Nessas prisões elas mofam à espera de uma adoção ou com a esperança remota de reencontrarem seus pais.

Na peça de Moreno elas respondem pelo nome dos países de onde vieram e são interpretadas por três adultos da terceira idade: México, menino de oito anos (Genézio de Barros); Honduras, menina de onze anos (Vera Mancini) e Nicarágua, menino de traze anos (Luiz Guilherme).

Engaioladas em um cubículo elas se distraem brincando com jogos infantis enquanto aguardam alguma porta da esperança se abrir, o menino de oito anos ainda espera reencontrar o pai, enquanto o mais velho não crê em finais milagrosos para eles, a menina se equilibra entre os sentimentos dos dois meninos.

Em um texto enxuto e preciso de 55 minutos Moreno expõe, com a poética e a delicadeza que lhe são peculiares, a crueldade de um sistema perverso que não isenta nem as crianças de suas garras.

O cenário de Eliseu Weide formado por grades que se deslocam é funcional e produz efeito bastante interessante. A iluminação sempre precisa de Caetano Vilela reforça o ambiente opressivo e claustrofóbico da prisão onde se passa a trama.

O maior mérito do espetáculo está na interpretação do elenco, que em momento algum usa de recursos “nhem, nhem, nhem” para mostrar que são crianças. Os figurinos (de Lara Morgana), alguns adereços (a boneca, o sorvete) e no máximo uma chupada de dedo são suficientes para o público sentir que está assistindo a crianças, envelhecidas pela tristeza do abandono. A preparação corporal assinada por Lu Grimaldi é fator importante para esse resultado.

Aplausos para Genézio, Vera e Luiz Guilherme.

Bernardo Bibancos é um jovem diretor que sabe o que faz, harmonizando todas essas funções teatrais com resultado surpreendente. Entusiasma assistir a um trabalho que, realizado com pequenos recursos, obtenha tão grande resultado.

JUEGO DE NIÑOS cumpriu pequena temporada no Itaú Cultural, mas reestreia no Teatro Estúdio de 18/11 a 09/12 às segundas e terças às 20h.

IMPORTANTE/NECESSÁRIO/IMPERDÍVEL!

16/11/2025

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

TEATRO ESTÚDIO

 

Com programação de primeiríssima qualidade, espaço cênico bastante maleável abrigando as mais diversas concepções cênicas, café aconchegante na sala de espera e acolhimento simpático por parte de Alexandre Galindo, Daniel Marano e Lucas Asseituno, o Teatro Estúdio vem se tornando um dos espaços teatrais mais simpáticos e concorridos da cidade.

Nestes últimos dias estão cartaz “Novas Diretrizes Em Tempo de Paz”, o magnífico novo trabalho de Eric Lenate / “Mary Stuart”, o monumento do teatro essencial de Denise Stoklos que mantém o frescor e o vigor depois de 40 anos de sua estreia / “Um Fax Para Colombo, leitura dramática também com Denise Stoklos / “Veneno”, com interpretações marcantes de Cleo Paris e Alexandre Galindo / “Real Politik”, sucesso de Daniela Pereira de Carvalho que vem atravessando toda a temporada de 2025. Programação para ninguém botar defeito.

“Juego de Niños”, “Tráfico” e “Escuta as Feras” são alguns dos espetáculos de inquestionável valor artístico que estão programados para entrar em cartaz no teatro e muita coisa boa vem por aí, segundo Galindo.

Inaugurado em fevereiro de 2023 como “Gênese – Estúdio de Criação”, foi rebatizado como “Teatro Estúdio” em julho do mesmo ano e por ali já passaram, segundo Marano, 22 de espetáculos.

Localizado na Rua Conselheiro Nébias, próximo ao Terminal Princesa Isabel e à Estação Santa Cecília do metrô o teatro revitalizou e tornou mais bonito um local até então inóspito.

LONGA VIDA AO TEATRO ESTÚDIO!

 

14/11/2025